Famílias de Manaus convivem com corpos por até 30 horas em suas casas

Famílias de Manaus convivem com corpos por até 30 horas em suas casas

Um cobertor de lã sintética com estampas de motivos africanos serviu de mortalha para o corpo de Francisco das Chagas Freitas, de 65 anos, por quase 24 horas. O cadáver do aposentado ficou sobre o chão de piso de cimento entre a cama e uma mesa pequena que ele mantinha na casa que vivia sozinho em um bairro da periferia de Manaus. No meio da tarde de terça-feira, contam os vizinhos, Francisco foi encontrado caído de bruços ao lado da mesa. “Cheguei aqui às cinco da tarde e o encontrei caído, sem vida. Logo chamamos o serviço funerário, estou ligando para eles desde o fim da tarde de ontem, mas só apareceram agora, quase um dia inteiro depois”, diz João Batista das Chagas, irmão de Francisco, revoltado com a espera. 

Preocupado em ver o corpo do irmão por tanto tempo sobre o piso duro, ele decidiu repousar a cabeça de Francisco em um pequeno travesseiro. “A gente sabe que ele se foi, mas mesmo no final queremos dar um conforto, né”, dizia ele, explicando a razão pela qual decidiu colocar o travesseiro para apoiar a cabeça do irmão morto. 

Ninguém sabe do que Francisco morreu. João Batista acha que se tratava de um infarto. “Não foi esse negócio de corona não, meu irmão infartou, ele nem saia de casa”, dizia ele, enquanto o corpo de seu irmão era colocado em um caixão simples pelos funcionários do SOS Funeral, um serviço oferecido pela prefeitura de Manaus para famílias de baixa renda que não tem recursos para arcar com os custos de sepultamento. “Ele tinha hipertensão, diabetes, problema no coração, a morte dele não foi por Covid não”, repetia. Após conseguir que o corpo de seu irmão fosse removido, João Batista ainda precisou esperar horas para que o único médico da cidade que estava atestando os óbitos domiciliares conferisse o corpo de seu irmão e fornecesse os documentos necessários para o enterro. 

Desde que o número de mortos começou a crescer de forma exponencial em Manaus nessas últimas três semanas, histórias como a Francisco e João Batista tem se repetido com cada vez mais frequência. De acordo com dados da prefeitura da cidade, só em Abril mais de 2 mil pessoas morreram na cidade, um volume de mortes até 300% maior do que nos períodos que antecederam a chegada do novo coronavírus à capital do Amazonas. Desse total, estima a prefeitura, mais de um terço das mortes aconteceram nas casas. “As pessoas não estão procurando mais os hospitais ou não estão conseguindo atendimento, então retornam para casa e falecem lá mesmo”, conta da diretora do Departamento de Vigilância Epidemiológica de Manaus, Marinelia Martins Ferreira.

O aumento repentino das mortes levou todo o sistema funerário da cidade à beira do colapso. E quem mais tem sentido os impactos desse problema são exatamente as famílias que estão precisando ficar com os corpos de seus entes queridos por 12, 24 e até 30 horas. No último final de semana a família de Maria Portelo de Lima, de 61 anos, precisou esperar um dia e meio para que seu corpo fosse recolhido. A aposentada morreu na manhã de domingo com sintomas de Covid e seu corpo só levado para a câmara frigorífica na noite de segunda-feira. 

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