Deputados gastaram em um mês recorde de R$ 26 milhões

Deputados gastaram em um mês recorde de R$ 26 milhões

Em dezembro de 2020, Brasília abrigou duas ações contraditórias no manejo das verbas públicas. No mesmo momento em que o Executivo deixava de pagar a primeira leva do Auxílio Emergencial criado na pandemia da Covid-19 em nome do equilíbrio das contas públicas, a Câmara dos Deputados patrocinava um gasto recorde da cota distribuída aos parlamentares para custeio de suas atividades legislativas.

Em um mês de Congresso esvaziado, com apenas três semanas de trabalho formal e ainda afetado pelo distanciamento social, deputados federais ganharam reembolso de R$ 26 milhões, 95% a mais do que a média verificada nos 11 meses anteriores (R$ 13,4 milhões), um recorde.

Mais da metade do total do dinheiro foi usado sob a justificativa de “divulgação da atividade parlamentar” e contratação de consultorias e pesquisas, mostram os dados coletados e organizados pela Folha por meio do site de transparência da Câmara.

A explosão dos gastos coincidiu com a chegada do prazo limite para o desembolso, já que todo o dinheiro reservado para a cota de 2020 que não fosse usado até 31 de dezembro daquele ano voltaria para os cofres públicos.

Havia um estoque considerável de dinheiro economizado, tendo em vista que em vários meses do ano não foi necessário gasto semanal com passagens aéreas de ida e volta dos deputados a Brasília —as sessões foram realizadas de forma virtual— nem com combustível, já que as viagens nos estados também praticamente cessaram no período mais crítico da pandemia.

O gasto nominal da cota em dezembro de 2020 foi o segundo maior da história da CEAP (Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar), instituída em 2009.

A cota tem o objetivo de reembolsar os parlamentares por gastos com passagens aéreas, alimentação, combustível, aluguel de escritório, propaganda (chamada de “divulgação do mandato”), consultoria, entre outros.

Varia de R$ 30,8 mil a R$ 45,6 mil, a depender do estado. O dinheiro não usado acumula para os meses seguintes, até dezembro, prazo limite para o uso.

Vinicius Gurgel (PL-AP), por exemplo, não havia gasto mais de R$ 40 mil da cota em nenhum mês até novembro. Em dezembro, desembolsou R$ 142 mil, sendo R$ 120 mil para um mesmo escritório de advocacia, Aquino Albuquerque e Rocha, pelo serviço de “consultoria, pesquisa e trabalhos técnicos”.

O escritório representa o deputado em processos na Justiça, desde antes de 2020 até depois, inclusive no STF.

Pelos serviços, foram emitidas três notas fiscais, com números sequenciais, sob a justificativa de consultoria para projetos legislativos.

O filho de um dos advogados do escritório trabalha, desde o segundo semestre de 2021, no gabinete de Gurgel.

Durante seu mandato, o deputado não contratou o escritório nenhuma outra vez e jamais direcionou mais que R$ 50 mil em um mês pelo mesmo serviço em outra ocasião.

Procurado, ele afirmou que a sequência nas notas se dá em razão de terem sido três serviços diferentes, mas não respondeu sobre qual teria sido o resultado da consultoria contratada.

“O trabalho feito consta no controle interno da Câmara e no TCU. O escritório é qualificado e o trabalho foi relativo a me auxiliar na minha atuação parlamentar”, afirmou, acrescentando que a contratação do filho do advogado para o seu gabinete cumpriu todos os requisitos da Câmara.

Uma das parlamentares que mais pediram reembolso em dezembro (R$ 242 mil) foi Marília Arraes (Solidariedade-PE), que em 2020 disputou e perdeu a Prefeitura do Recife pelo PT.

A quase totalidade dos recursos, R$ 228 mil, foi usada na rubrica de “divulgação da atividade parlamentar”, que funciona como propaganda dos parlamentares custeada pelos cofres públicos. De acordo com as notas fiscais, foram produzidas e veiculadas em TVs, rádios e internet peças relativas à atividade da parlamentar em 2020.

A assessoria da deputada disse que ela continuou exercendo normalmente o seu mandato, de forma remota, mesmo no período de campanha, e nega que os pagamentos de dezembro tenham relação com compromissos eleitorais.

“Ao contrário de outros parlamentares, a deputada não tirou licença para se dedicar à campanha, tendo uma atividade institucional das mais relevantes, com a apresentação de 215 propostas legislativas, entre as quais 77 projetos de lei, a presença em 95 sessões e a participação em 390 votações nominais em plenário.”

A deputada Christiane Yared (PP-PR) também teve um gasto fora da média com a divulgação parlamentar em dezembro daquele ano —R$ 100 mil para a produção de 100 mil revistas.

Em 2020, Yared foi candidata a prefeita de Curitiba, mas não se elegeu. Seu maior gasto na campanha daquele ano foi com a mesma gráfica, R$ 640 mil. A deputada não quis se manifestar.

O tucano Beto Pereira (MS) usou em dezembro quase um quarto de sua cota parlamentar do ano inteiro.

Do total, R$ 67 mil foram gastos na divulgação da atividade parlamentar, sendo R$ 53 mil à empresa RPR Criações Gráficas para impressão de 250 mil informativos em tamanho A3, impressos a cores e em papel couchê. O quantitativo representa o triplo da votação obtida pelo parlamentar em 2018 (80.500 votos).

Pereira disse que “a impressão de informativos é diretamente proporcional ao volume de trabalho e resultados da atividade política no Parlamento” e que os valores são legais e passam por rígida e transparente fiscalização.

Diferentemente do que diz o parlamentar, porém, a Câmara se restringe a conferir se a documentação de gastos apresentada pelos deputados se enquadra nas regras de reembolso. Não há qualquer tipo de fiscalização, nem por amostragem.

O deputado Fabio Reis (MDB-SE) teve padrão de uso da cota semelhante ao do colega de Mato Grosso do Sul. Em dezembro, seu gasto total foi de R$ 102 mil contra média de R$ 26 mil nos meses anteriores.

O maior montante foi desembolsado com divulgação parlamentar na gráfica Editora J. Andrade Ltda, a mesma utilizada na sua campanha à Prefeitura de Lagarto em 2020 —ele não foi eleito. A Folha procurou o parlamentar, mas não obteve resposta.

O bolsonarista Éder Mauro (PL-PA), que já havia usado verba da cota para publicar outdoors com propaganda de Jair Bolsonaro, gastou R$ 166 mil em dezembro de 2020, sendo R$ 40,5 mil novamente com outdoors em Belém e cidades do interior. Em um deles, aparece sua foto e a legenda em que afirma que destinou R$ 846 milhões ao Pará em emendas ao Orçamento.

Outros R$ 60 mil foram gastos em 80 mil panfletos de divulgação de suas atividades parlamentares.

“Nosso estado é o segundo maior em extensão territorial, em alguns lugares ainda é remoto o acesso às redes e mídias tradicionais. Assim, nosso mandato opta pelo outdoor, em sua maioria, porque a peça publicitária chega aos rincões do Estado”, disse Éder Mauro, por meio de sua assessoria.

Benedita da Silva (PT), que também foi candidata a prefeita em 2020, gastou R$ 206 mil da cota parlamentar em dezembro de 2020. Entre outros, R$ 88 mil para a produção de um vídeo para as redes sociais e um spot de 60 segundo para rádios.

Por meio de sua assessoria, a parlamentar disse que suas atividades foram maiores em 2020, em razão da discussão e elaboração de propostas para uma população “entregue à própria sorte, desempregada e passando necessidades básicas por conta de um governo federal despreparado e insensível às dores da população.”

E destacou a autoria do projeto de lei que resultou na aprovação de uma política nacional permanente para fomento à cultura, que passou a ser chamada de nova lei Aldir Blanc.

“Esse é apenas um exemplo de dezenas de outros projetos e ações que contaram com a autoria, coautoria ou defesa da parlamentar.”

O deputado Subtenente Gonzaga (PSD-MG) gastou em dezembro de 2020 R$ 196 mil para confecção de 100 mil exemplares de um jornal de 16 páginas com suas atividades parlamentares e o envio pelos correios para sua base eleitoral.

“Por razão da pandemia, não houve viagens, a gente conseguiu economizar. Aí no final do ano, eu tinha duas opções, realmente. Sentamos e discutimos aqui: ‘Vamos devolver, que é um caminho natural também, ou vamos fazer o informativo, que também é um caminho natural?'”, disse.

Gonzaga afirmou ter optado pelo informativo por considerar que o jornal impresso ainda é uma forma mais efetiva de fazer uma comunicação mais aprofundada com seu eleitor.

“Não foi uma coisa diversa, não fiz um informativo e joguei para cima. Mandamos para uma base que é nossa base da categoria de policiais e bombeiros militares e pensionistas aqui em Minas Gerais. A explicação técnica e legal, é ok. A opção política de fazer ou não fazer, é difícil buscar a concordância.”

Em dezembro de 2020, o deputado Marx Beltrão (PP-AL) pagou R$ 50 mil à São Judas Tadeu Pesquisas para consultar, em cidades do interior de seu estado, as demandas da população com vistas a “identificar as necessidades para indicação das emendas” parlamentares. Dentre os municípios está Coruripe, onde ele foi prefeito entre 2005 e 2013.

Naquele mesmo ano, seu irmão, Maykon Beltrão, foi candidato à prefeitura da cidade e contratou a São Judas Tadeu. Beltrão não quis se manifestar.